Agora só se
fala em qualidade de vida e, em matéria de qualidade de vida, sou
um dos sujeitos mais ameaçados que conheço.
Na verdade, me dizem que
venho experimentando uma considerável melhora de qualidade de vida,
mas tenho algumas dúvidas.
Minha qualidade de vida,
na minha modesta opinião pessoal, não tem melhorado essas
coisas todas, com as providências que me fazem tomar e as violências
que sou obrigado a cometer contra mim mesmo.
Geralmente suporto bem
conversas sobre qualidade de vida, mas tendo cada vez mais a retirar-me
do círculo ou recinto onde me encontro, quando começam a
falar nela.
A comida mesmo me faz estar
considerando, no momento, comprar uma balança de precisão
e um computador de bolso com um programa alimentar especial.
Antes eu comia do que gostava.
Fui criado, por exemplo, com comida frita
na banha de porco ou, mais tarde, na gordura de côco.
Meus avós, todos
mortos depois dos 90 (com exceção do que só comia
o saudabilíssimo azeite de oliva - e ele morreu de AVC), comiam
banha de porco e torresmo regularmente, mas, claro, ainda não tinham
sido informados de que se tratava de prática mortal.
Aliás, comida saudável,
que se ensinava nos manuais até para crianças, era composta
de leite integral, ovos, pão (com manteiga), carne vermelha ou
peixe - frito, então, era uma maravilha para estômagos delicados
- frutas e legumes à vontade.
Depois disso, até
atingirmos a atual qualidade de vida, fulminaram o leite.
Alimento completo, passou
a ser encarado com desconfiança e hoje não sei de ninguém
que beba leite integral, a não ser,talvez, algum gorila do Zoológico.
O ovo sofreu ataque violentíssimo,
assim como o açúcar, a ponto de, tenho certeza, várias
receitas tradicionais de doces serem hoje achados arqueológicos
e as poucas que restam constituam uma imitação desenxabida
das que empregavam ingredientes normais e não essas massas e líquidos
insossos que vivem distribuindo como leite, manteiga, etc.
Claro, mudaram de idéia
a respeito do ovo recentemente, mas a mudança de idéias
deles só pode ser vista com desconfiança.
Não houve o tempo,
e não é preciso ser nenhum Matusalém para lembrar,
em que, para substituir a manteiga era exigida margarina, alimento saudabilíssimo,
que não fazia nenhuma das monstruosidades operadas pela manteiga
?
O negócio era margarina
e durou bastante, até que descobriram que margarina pode ser até
pior do que manteiga.
Melhor, na verdade, abolir
manteiga inteiramente.
E margarina, claro, nem pensar.
Carne vermelha é
uma abominação.
Carne de porco é um terror.
Vísceras de qualquer
tipo devem ser evitadas como o Diabo foge da cruz.
Açúcar, meu
Deus!
Sorvete ? Só para crianças,
e crianças de pais irresponsáveis.
Aliás, é
um bom desafio achar algo unanimemente aprovado pelos nutricionistas,
a não ser, tudo indica, capim.
Mas ninguém pode
viver de capim, de maneira que, relutantemente, deixam a gente comer uma
coisinha qualquer, contanto que não ultrapassemos o limite de calorias
e não ingiramos o proibido e, mesmo assim, com restrições.
Peixe cozido ou grelhado,
por exemplo, geralmente pode, mas paira sobre seu infeliz consumidor a
ameaça de que não esteja fresco ou esteja contaminado por
metais pesados e pelo lixo que jogam em rios e mares.
Peito de frango (e eu que
sou homem de coxas e antecoxas) também assusta, por causa dos hormônios
que dão às galinhas e as neuroses que elas desenvolvem,
nascendo sem mãe e sendo criadas em cubículos em que mal
podem se mexer, a ponto de terem de ser debicadas, para não se
auto-devorarem histericamente.
Ou seja, mesmo comendo
um peito de galinha sem uma gota de qualquer gordura e acompanhado somente
por matos e alguns legumes (cuidado com a contaminação de
tomates, cenouras e alfaces!), o infeliz se arrisca.
Mas vou usar o computador
para calcular as calorias, as gorduras e outras características
de cada refeição, porque, agora que minha qualidade de vida
está melhorando a cada dia, preciso ser coerente.
Fumar, não mais,
nem uma pitadinha depois do café (que ninguém sabe direito
se faz bem ou faz mal, temperado com adoçante, que também
ninguém sabe se faz bem ou faz mal).
Beber, esqueça,
vai deixar você demente aos 60, além de dar cirrose e hepatite.
O famoso copinho de vinho,
além de ser uma porção ridícula, também
está sendo questionado no momento.
Parece que não é
bem assim, e uma autoridade no assunto disse outro dia no jornal que o
melhor é tomar suco de uva - não industrializado, é
claro, por causa dos aditivos.
Restam também os
exercícios.
Fico felicíssimo, quando, suando
e bufando no calçadão, sinto o ar fresco invadir os meus
pulmões (preferia logo uma tenda de oxigênio), as pernas
doendo e a certeza de que minha qualidade de vida vai cada vez melhor.
Até minha pressão
arterial (13 a 14 por 8), que era considerada boa para minha idade, agora
já é alta e o pessoal dos 12 por 8 já começa
a entrar na faixa de risco.
Enfim, é duro manter
esta boa qualidade de vida, ainda mais agora que me anunciam que caminhadas
somente não bastam, tem de malhar também.
Ou seja, temos que nos
dedicar o tempo todo a manter nossa qualidade de vida.
Mas, aqui entre nós,
se vocês no futuro virem um gordão tomando caldinho de feijão
com torresmo no boteco, depois de um chopinho e o acharem vagamente parecido
comigo, talvez seja eu mesmo, sofrendo de uma pavorosa qualidade de vida.
A diferença é
grande.
Tanto eu quanto vocês vamos morrer
do mesmo jeito, mas vocês, depois da excelente qualidade de vida
que estão desfrutando aí com sua rúcula com suco
de brócolis, vão ter uma ótima qualidade de morte,
falecendo em perfeita saúde e eu lá, no meu velório,
com um sorriso obeso contente no rosto dissoluto. |